A cruz é sinal e expressão da redenção da pessoa. Ela envolve o ser
humano em todas as suas dimensões e o predispõe a comunhão com Deus, com os
seus semelhantes, com o mundo. Nela a pessoa se descobre amada por Deus e
contempla sua vontade, vê a si mesmo em Cristo, pois n’Ele e por meio d’Ele o
Pai nos alcança na morte. Assim, a vontade Deus é que nós nos encontremos e
permaneçamos n’Ele como parte da humanidade redimida na cruz de Cristo e amada
no Pai no seu Filho e que nos voltemos ao Pai por intermédio do Filho na ação
do Espírito Santo. Por meio dos Sacramentos, em especial no Batismo e na
Reconciliação, a vida divina, seu amor, atinge o homem profundamente e o
transforma, o redime, o cura, o santifica, o restaura. Com intuito de
compreender o alcance e o valor da cruz como participação no Mistério Pascal de
Cristo, veremos os seguintes itens[1]:
1.
O simbolismo da cruz: A cruz é sinal de posse, de propriedade, de proteção, de vitória
invencível, de consagração e, de acordo com as referências bíblicas de Ez 9,4;
Ex 12,7-13; Nm 21,4-9 e Ap 7,2-3, do ser humano. Este só se torna ele mesmo
quando aceita a estrutura da cruz, pois ela é o caminho para a união dos
opostos e o sinal de triunfo sobre o poder da morte e do pecado. É necessário
vivermos amarrados na Cruz de Jesus Cristo para navegarmos em segurança. No
Primeiro Testamento temos algumas analogias acerca da cruz: “madeira” é o typos
da cruz, bem como “vara” e “árvore da vida”. Segundo João Crisóstomo a cruz “é
luz, tocha que dá vida. É a virada dos tempos que transforma tudo, é símbolo da
vitória do amor sobre o ódio”. O sinal da cruz que traçamos sobre nós e sobre
as pessoas e as coisas recorda e evoca entre outras coisas: a entrega a Deus e
a separação dos demais (eleição); a confissão pública a Jesus Cristo; o amor de
Deus que nos cerca em toda parte; uma vida que responde com todas as fibras do
coração ao amor do Crucificado. Precisamos carregá-la e tomá-la todos os dias.
Por um lado devemos estar prontos para o martírio, por outro superar os perigos
que brotam de seu interior e aceitar os sofrimentos e tristezas da existência;
suportar pacientemente e com persistência o que Deus permite em nossas vidas (perseguições,
sofrimentos, tristezas, feridas, humilhações, decepções...) numa palavra: levar
uma vida crucificada (Gl 6,14). Em algumas imagens do Crucificado os olhos
estão abertos para significar que Jesus é a divindade intacta, o Leão que vigia
enquanto dorme – sinal do amor superabundante de Jesus Cristo. Tudo é
transformado na Ressurreição. As imagens do Ressuscitado retratam a superação
de todo sofrimento e também da esperança, do consolo, da luz, da confiança e da
alegria que despontam da vida após a morte;
2.
O significado da cruz no Segundo
Testamento: Segundo São Paulo a cruz é: escândalo para os
judeus, loucura para os gentios e sabedoria de Deus para os chamados,
escolhidos e eleitos (1Cor 1,23s); protesto contra o autoelogio e a
autosuficiência; sinal de que Deus
abre-se aos fracos e manifesta seu amor incondicional e sua graça (cf. Gl
3,13); protesto de um mundo fechado sobre si; evocação ao amor que foi
derramado em nós pelo Espírito Santo (Gl 5,24; 6,14); estigma, cicatriz,
“tatuagem”, sinal de propriedade, de pertença e proteção divinas (Gl 6,17). Já
os Evangelhos Sinóticos[2]
apresentam a cruz como sinal do poder demoníaco e das intrigas humanas; sinal
da virada das trevas à luz, do ódio ao amor; sinal da esperança (Evangelho de
Marcos); sinal da não-violência e do paciente ato de suportar, isto é, a
reconciliação entre Deus e os seres humanos (Evangelho de Mateus); sinal
daquilo que cruza nosso caminho e nossa vida para quebrar as idéias erradas que
construímos em relação a nós mesmos e aos outros; sinal de que temos que tomar,
carregar e assumir as tribulações diárias que a vida traz consigo; sinal de que
devemos entrega a Deus a vida e a existência dizendo sim à nossa missão no
estado de vida que nos encontramos; a cruz é imagem da existência cristã que se
abre para a vida, para as pessoas, para o mundo e para Deus; enfim encontrar o
Crucificado a partir da experiência da cruz significa encontrar seu próprio
âmago divino, isto é, reconhecer o próprio Deus que se manifesta e se revela na
cruz (Evangelho de Lucas). São João por sua vez apresenta a cruz como a plena
realização da encarnação, momento que mais brilha a glória de Deus, isto é,
revelação da glória de Deus e de seu amor misericordioso e salvífico. Noutras
palavras, é convite para crer no amor misericordioso; é juízo; sinal de
salvação e redenção; é o trono onde Jesus Reina; é imagem do amor
incondicional, da entrega, da transformação da vida; sinal de esperança, de
amor, do esvaziamento e da bondade divina;
3.
INTERPRETAÇÃO DA CRUZ EM KARL RAHNNER: O entendimento, o ato da liberdade e a solidariedade possibilitam
o ser humano atingir a salvação comunicada por Deus a Ele. A autocomunicação de
Deus se dá na história. Para Rahnner o ser humano é uma existência
intercomunicativa para a morte e a anseia para a ressurreição. A isto chama de
teologia transcendental, de busca. A morte é a síntese de toda a vida, ela é a
parte essencial da existência humana; é a plenificação do amor e da obediência.
A morte é paixão. Nela se manifesta o alcance do pecado. Jesus transforma a
morte em entrega amorosa ao Pai. Neste sentido os Sacramentos tornam o amor de
Deus visível e palpável. O ser humano nunca está sozinho – intercomunicação –
sempre está vinculado e determinado por outros. A cruz é a imagem de nosso
relacionamento muito pessoal com Jesus Cristo. A salvação é entendida como
entrega a Deus que se entrega a nós – abandonar-se – cruz é transcendência
radical. A cruz liberta o ser humano para ser ele mesmo; ela nos questiona.
Apenas a pessoa que aceita a morte verdadeiramente torna-se verdadeiramente um
ser humano. Ela é convite para a vida verdadeira, para o verdadeiro humanismo.
Enfim, afirma Rahnner: a cruz é sinal de reconciliação e unidade;
4.
OUTRAS TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO DA CRUZ: O ser humano alienado, dividido, dilacerado, encontra sentido no
Cristo redentor, na cruz e na Ressurreição do Senhor. Segundo Paul Tillich a
cruz é a aceitação do inaceitável. Ela abraça todo nosso ser e transforma-o a
partir de dentro. Assim sendo, estar são, salvo, sanado, curador, significa
estar íntegro, estabelecido na união original. Na cruz a vida e a morte, Deus e
o ser humano, o céu e a terra, o corpo e a alma, estão em união mútua – a cruz
opera a unificação dos opostos e contradições que encontramos dentro de nós.
Ela nos protege contra a absolutização do poder finito na política, de formas e
conteúdos finitos na religião, de valores finitos na sociedade e na cultura;
também nos protege contra a dominação e a escravidão do finito. Ela mostra que
nenhuma esfera humana de nossa vida está sem relação com o incondicional – da
liberdade aberta. Todos os âmbitos de nossa vida estão relacionados com Deus e
orientados para Ele, tem a ver com Ele. Mostra que o mundo inteiro está nas
mãos de Deus e remete para Deus, que fora dele não há nada que subsiste. Jurgen
Molmann (teólogo evangélico), por sua vez, concebe a cruz princípio do
entendimento e do reconhecimento da divindade. Ela tem, segundo ele, três
significados: revela a lei da graça e da liberdade; é a morte do revoltoso –
tem uma relevância política; é um grito de abandono. Portanto a cruz é a
irrupção da justiça de Deus, é a revelação do Deus Triúno – na cruz Deus leva
para dentro de si toda revolta da história, toda culpa, morte e abandono –
revelação de Deus Compaixão. Na cruz nos tornamos humanos verdadeiramente –
equilíbrio psíquico – porque Deus crucificado nos liberta e nos faz vivos,
vulneráveis, capazes de amar e deixar-se amar. A cruz exige ações de libertação
frente à pobreza, a violência, a alienação, a destruição e ao abandono. Segundo
C. G. JunG, psicólogo suíço, o símbolo da cruz provoca efeito sanador e
centrador sobre o self do ser humano. Ela é símbolo do sacrifício, do
sofrimento, do cosmo (união de todos os opostos), da integridade, da redenção;
é um presente de Deus. Ela nos leva a integridade e a acolher os dons divinos.
É imagem de da reconciliação de todos os opostos; tem um efeito sanador,
protetor e estabilizador. Enfim, a cruz nos leva a abrir-se para o mundo, às
pessoas e a Deus; temos que ser tocados, machucados pelas pessoas, até que o
amor de Deus possa curar-nos e transformar-nos;
5.
A CRUZ HOJE: A cruz é sinal do triunfo da
vida sobre a morte, do amor sobre o ódio; é sinal da árvore da vida, sinal de
esperança; é sinal sanador e encorajador. Diante de nós, através dos
noticiários das várias emissoras de TV e dos Meios de Comunicação em geral, são
apresentados os sofrimentos, as dores, as angustias e as mazelas da vida em
todas as suas dimensões, causando muitas vezes indiferença, falta de compaixão,
esquecimento do sofrimento ou um tabu, isto é, ver a dor e a cruz como sinal de
desalento, dureza, insensibilidade, isolamento, fuga (deixando-as aos cuidados
dos psicólogos, médicos, assistentes socais, padres, pastores...) ou como uma
espécie de lepra que causa repugnância. Entretanto a cruz nos lembra as paixões
de nosso tempo e traz esperança, amor; é um convite a solidariedade com os que
sofrem. Ela nos faz carregar e enfrentar a sorte com mais força, otimismo,
esperança; faz também ficar interiormente alegre e contente frente ao
sofrimento. A cruz é a imagem da humanidade autêntica e da pessoa redimida.