“Com a
alegria do Espírito Santo e cheios do desejo espiritual, esperemos a santa
páscoa” (Regra de São Bento, 49,7)
Quaresma “Sinal sacramental da nossa
conversão”. O caminho de fé-conversão implica em etapas sucessivas, em
movimento progressivo. O ano litúrgico corresponde a esta pedagogia e “goza de força
sacramental e especial eficácia para alimentar a vida
cristã” [i]. Por isso, os tempos e as festas que voltam a cada
ano, com as mesmas leituras, os mesmos cantos e orações, não é um monótono
repetir-se das coisas, mas uma representação sacramental do mistério de Cristo
e da sua Igreja. Não se trata de simples reprodução dramática da vida, morte e
ressurreição de Jesus, mas é memória sacramental: o que se
realizou em Jesus ‘uma vez por todas’ se atualiza no presente momento de nossa
história, mediante nossa adesão, ao participarmos das ações litúrgicas com
conhecimento de causa, ativa e frutuosamente (cf. SC 11). A quaresma, no seu
conjunto de palavras, ritos e ‘exercício da vida cristã’, é um grande “sinal
sacramental da nossa conversão” [ii]. Enquanto realidade sacramental, é feita de sinais
sensíveis: gestos corporais, sentido teológico (realidade
significada) e atitude interior.
Gestos corporais, símbolos,
imagens, personagens, músicas. Quaresma: um tempo de quarenta dias.
·
- Cinzas
em nossa fronte
·
- Cor
roxa (rosa no 4o domingo) e ausência de flores.
·
- Canto
sem glória, sem aleluia e sem instrumentos musicais, indicando sobriedade,
coerente com o sentido e a espiritualidade da quaresma: “Reconciliai-vos com
Deus”; “o vosso coração de pedra se converterá”; “Dizei aos cativos
saí”...
·
- Jejum,
esmola e oração.
·
- A cruz em
destaque.
·
- O ato
Penitencial ou o rito da bênção e aspersão com água.
·
- O
sacramento da reconciliação.
·
Personagens: Moisés,
o profeta do êxodo; a samaritana; o cego; Lázaro, Nicodemos; a pecadora; o
Filho pródigo... Sobretudo Jesus, o novo Moisés e o novo Adão.
·
Imagens: o
grão de trigo que morre para gerar vida; o desafio de nascer de novo.
·
A
procissão com ramos e a cor vermelha no domingo de Ramos.
·
Quarenta dias:
40 dias e 40 noites do dilúvio... 40 anos do Povo hebreu,
a caminho, pelo deserto... 40 dias e 40 noites que Moisés passou
no alto da montanha... 40 dias e 40 noites que Elias caminhou
até o monte de Deus... O prazo de 40 dias da cidade de Nínive... Sobretudo, os
40 dias e 40 noites do retiro de Jesus no deserto, depois do
batismo no Jordão onde recebe do Pai a missão de Servo. No primeiro domingo
(anos ABC) vemos Jesus indo para o deserto repleto do Espírito. Apoiado na
Palavra do Pai vence a provação do demônio e se prepara para a missão e todas
as conseqüentes provações.
Sentido
teológico-litúrgico e atitude interior
O tempo da quaresma coincide com o tempo da purificação
e iluminação dos catecúmenos que deverão celebrar os sacramentos da
iniciação na páscoa. Para os que foram batizados, a quaresma
é tempo de viver as exigências deste sacramento, mediante profunda e
progressiva conversão, ‘para celebrar os mistérios pascais, que nos deram vida
nova e nos tornaram filhos e filhas de Deus” (cf. prefácio I).
Começamos a quaresma (rito das cinzas) escutando um
duplo convite: “convertei-vos e crede no evangelho”:
a) A conversão parte
do fato que o mal está instalado no coração humano, assim como nas relações
sociais. A conversão é a possibilidade de superar o mal pelo exercício
constante do bem. Pedagogicamente a austeridade própria da quaresma,
sobretudo a prática do jejum, nos remetem ao necessário vazio
do corpo e do coração. Assumir o jejum como ‘sacramento da páscoa’
pelo qual o Espírito nos faz passar das nossas necessidades, às necessidades
dos outros, como exercício de conversão. Jejum ‘com a cabeça perfumada’, já que
a conversão é obra da iniciativa de Deus em Cristo, e não
simples resultado de um esforço nosso.
b) Justamente por que cremos que é
Deus quem nos converte, pelo seu Espírito, somos convidadas/os a abrir maior
espaço para a gratuidade da oração, lembradas/os que somos parte do
‘povo da aliança’ (cf. prefácio V). Oração que é um colocar-se sob o
‘julgamento’ da Palavra de Jesus, obedecendo à voz do Pai no
batismo e na transfiguração (2º domingo – ABC): “este é meu filho amado, escutai-o”. Escutar a Palavra com
atenção e assiduidade e crer na sua força, para vencer ‘as tentações’: a) de
consumir (bens, cargos, informações...); b) de dominar situações e pessoas como
forma de auto-afirmação; c) de instrumentalizar Deus em benefício próprio.
c) Durante a quaresma, nos domingos
e dias da semana, na missa e na Liturgia das Horas/ODC, as orações, os textos
bíblicos e os textos patrísticos, vão como que indicando o caminho. A
primeira leitura dos domingos, nos anos ABC, conta os grandes
momentos da história da salvação e da caminhada do povo de Deus. A partir do 3º domingo
(no ano C) os textos evangélicos (figueira estéril, o filho que volta,
pecadora perdoada) enfatizam a misericórdia de Deus e convidam a acolhe-la
mediante a conversão do coração e o perdão.[iii]
d)
O perdão como
exercício de conversão: auto-conhecimento e aceitação de si com suas
ambigüidades, compreensão dos outros com suas sombras... não aprisionar a si e
aos outros nas conseqüências negativas dos próprios atos... Com os nossos
‘critérios adquiridos’, o perdão pode parecer impossível, mas o ‘divino em nós’
pode perdoar.
e)
A cruz pela
qual fomos marcados no batismo, em destaque neste tempo, lembra que somos
discípulas/os de Jesus, que superou o fracasso humano da Cruz com um amor que
vence a morte. “Sabemos que passamos da morte à vida se amamos os irmãos” (1Jo
3,14).
Repercussões...
‘Somos Todos Um Só. (...) O gesto concreto
positivo, ainda que pequeno e isolado, tem repercussão para a humanidade, para
o universo, e o mal que fazemos aos outros atinge a nós também (Dalai Lama).
Dicas de ouro: tratar os outros como gostaria de ser tratada/o e fazer o
bem sem esperar troca (cf. Lc 6,31.35).
[ii] O texto italiano
tem esta tradução : “Ó Dio, nostro Padre, com la celebrazione di questa
Quaresima, segno sacramentale della
nostra conversione, concedi a noi tuoi fedeli di crescere nella
conscenza del mistero de Cristo e di testimoniarlo con una degna condotta de
vita (...)”. É uma tradução mais fiel ao texto latino.
Infelizmente no missal brasileiro esta compreensão da quaresma como
‘sacramento’ ficou oculta.
[iii] Os evangelhos do ano A, enfatizam a dimensão batismal da Igreja.
Correspondem ao esquema mais antigo, ligado ao catecumenato (Samaritana, cego,
Lázaro). No ano B, o acento é colocado sobre a glorificação de Cristo
mediante a cruz e sobre a nossa participação no seu mistério (vendilhões do
templo, Nicodemos, grão de trigo).