sábado, 4 de abril de 2015

A CRUZ COMO PARTICIPAÇÃO NO MISTÉRIO PASCAL DE CRISTO

A cruz é sinal e expressão da redenção da pessoa. Ela envolve o ser humano em todas as suas dimensões e o predispõe a comunhão com Deus, com os seus semelhantes, com o mundo. Nela a pessoa se descobre amada por Deus e contempla sua vontade, vê a si mesmo em Cristo, pois n’Ele e por meio d’Ele o Pai nos alcança na morte. Assim, a vontade Deus é que nós nos encontremos e permaneçamos n’Ele como parte da humanidade redimida na cruz de Cristo e amada no Pai no seu Filho e que nos voltemos ao Pai por intermédio do Filho na ação do Espírito Santo. Por meio dos Sacramentos, em especial no Batismo e na Reconciliação, a vida divina, seu amor, atinge o homem profundamente e o transforma, o redime, o cura, o santifica, o restaura. Com intuito de compreender o alcance e o valor da cruz como participação no Mistério Pascal de Cristo, veremos os seguintes itens[1]:
1.    O simbolismo da cruz: A cruz é sinal de posse, de propriedade, de proteção, de vitória invencível, de consagração e, de acordo com as referências bíblicas de Ez 9,4; Ex 12,7-13; Nm 21,4-9 e Ap 7,2-3, do ser humano. Este só se torna ele mesmo quando aceita a estrutura da cruz, pois ela é o caminho para a união dos opostos e o sinal de triunfo sobre o poder da morte e do pecado. É necessário vivermos amarrados na Cruz de Jesus Cristo para navegarmos em segurança. No Primeiro Testamento temos algumas analogias acerca da cruz: “madeira” é o typos da cruz, bem como “vara” e “árvore da vida”. Segundo João Crisóstomo a cruz “é luz, tocha que dá vida. É a virada dos tempos que transforma tudo, é símbolo da vitória do amor sobre o ódio”. O sinal da cruz que traçamos sobre nós e sobre as pessoas e as coisas recorda e evoca entre outras coisas: a entrega a Deus e a separação dos demais (eleição); a confissão pública a Jesus Cristo; o amor de Deus que nos cerca em toda parte; uma vida que responde com todas as fibras do coração ao amor do Crucificado. Precisamos carregá-la e tomá-la todos os dias. Por um lado devemos estar prontos para o martírio, por outro superar os perigos que brotam de seu interior e aceitar os sofrimentos e tristezas da existência; suportar pacientemente e com persistência o que Deus permite em nossas vidas (perseguições, sofrimentos, tristezas, feridas, humilhações, decepções...) numa palavra: levar uma vida crucificada (Gl 6,14). Em algumas imagens do Crucificado os olhos estão abertos para significar que Jesus é a divindade intacta, o Leão que vigia enquanto dorme – sinal do amor superabundante de Jesus Cristo. Tudo é transformado na Ressurreição. As imagens do Ressuscitado retratam a superação de todo sofrimento e também da esperança, do consolo, da luz, da confiança e da alegria que despontam da vida após a morte;
2.    O significado da cruz no Segundo Testamento: Segundo São Paulo a cruz é: escândalo para os judeus, loucura para os gentios e sabedoria de Deus para os chamados, escolhidos e eleitos (1Cor 1,23s); protesto contra o autoelogio e a autosuficiência;  sinal de que Deus abre-se aos fracos e manifesta seu amor incondicional e sua graça (cf. Gl 3,13); protesto de um mundo fechado sobre si; evocação ao amor que foi derramado em nós pelo Espírito Santo (Gl 5,24; 6,14); estigma, cicatriz, “tatuagem”, sinal de propriedade, de pertença e proteção divinas (Gl 6,17). Já os Evangelhos Sinóticos[2] apresentam a cruz como sinal do poder demoníaco e das intrigas humanas; sinal da virada das trevas à luz, do ódio ao amor; sinal da esperança (Evangelho de Marcos); sinal da não-violência e do paciente ato de suportar, isto é, a reconciliação entre Deus e os seres humanos (Evangelho de Mateus); sinal daquilo que cruza nosso caminho e nossa vida para quebrar as idéias erradas que construímos em relação a nós mesmos e aos outros; sinal de que temos que tomar, carregar e assumir as tribulações diárias que a vida traz consigo; sinal de que devemos entrega a Deus a vida e a existência dizendo sim à nossa missão no estado de vida que nos encontramos; a cruz é imagem da existência cristã que se abre para a vida, para as pessoas, para o mundo e para Deus; enfim encontrar o Crucificado a partir da experiência da cruz significa encontrar seu próprio âmago divino, isto é, reconhecer o próprio Deus que se manifesta e se revela na cruz (Evangelho de Lucas). São João por sua vez apresenta a cruz como a plena realização da encarnação, momento que mais brilha a glória de Deus, isto é, revelação da glória de Deus e de seu amor misericordioso e salvífico. Noutras palavras, é convite para crer no amor misericordioso; é juízo; sinal de salvação e redenção; é o trono onde Jesus Reina; é imagem do amor incondicional, da entrega, da transformação da vida; sinal de esperança, de amor, do esvaziamento e da bondade divina;
3.    INTERPRETAÇÃO DA CRUZ EM KARL RAHNNER: O entendimento, o ato da liberdade e a solidariedade possibilitam o ser humano atingir a salvação comunicada por Deus a Ele. A autocomunicação de Deus se dá na história. Para Rahnner o ser humano é uma existência intercomunicativa para a morte e a anseia para a ressurreição. A isto chama de teologia transcendental, de busca. A morte é a síntese de toda a vida, ela é a parte essencial da existência humana; é a plenificação do amor e da obediência. A morte é paixão. Nela se manifesta o alcance do pecado. Jesus transforma a morte em entrega amorosa ao Pai. Neste sentido os Sacramentos tornam o amor de Deus visível e palpável. O ser humano nunca está sozinho – intercomunicação – sempre está vinculado e determinado por outros. A cruz é a imagem de nosso relacionamento muito pessoal com Jesus Cristo. A salvação é entendida como entrega a Deus que se entrega a nós – abandonar-se – cruz é transcendência radical. A cruz liberta o ser humano para ser ele mesmo; ela nos questiona. Apenas a pessoa que aceita a morte verdadeiramente torna-se verdadeiramente um ser humano. Ela é convite para a vida verdadeira, para o verdadeiro humanismo. Enfim, afirma Rahnner: a cruz é sinal de reconciliação e unidade;
4.    OUTRAS TENTATIVAS DE INTERPRETAÇÃO DA CRUZ: O ser humano alienado, dividido, dilacerado, encontra sentido no Cristo redentor, na cruz e na Ressurreição do Senhor. Segundo Paul Tillich a cruz é a aceitação do inaceitável. Ela abraça todo nosso ser e transforma-o a partir de dentro. Assim sendo, estar são, salvo, sanado, curador, significa estar íntegro, estabelecido na união original. Na cruz a vida e a morte, Deus e o ser humano, o céu e a terra, o corpo e a alma, estão em união mútua – a cruz opera a unificação dos opostos e contradições que encontramos dentro de nós. Ela nos protege contra a absolutização do poder finito na política, de formas e conteúdos finitos na religião, de valores finitos na sociedade e na cultura; também nos protege contra a dominação e a escravidão do finito. Ela mostra que nenhuma esfera humana de nossa vida está sem relação com o incondicional – da liberdade aberta. Todos os âmbitos de nossa vida estão relacionados com Deus e orientados para Ele, tem a ver com Ele. Mostra que o mundo inteiro está nas mãos de Deus e remete para Deus, que fora dele não há nada que subsiste. Jurgen Molmann (teólogo evangélico), por sua vez, concebe a cruz princípio do entendimento e do reconhecimento da divindade. Ela tem, segundo ele, três significados: revela a lei da graça e da liberdade; é a morte do revoltoso – tem uma relevância política; é um grito de abandono. Portanto a cruz é a irrupção da justiça de Deus, é a revelação do Deus Triúno – na cruz Deus leva para dentro de si toda revolta da história, toda culpa, morte e abandono – revelação de Deus Compaixão. Na cruz nos tornamos humanos verdadeiramente – equilíbrio psíquico – porque Deus crucificado nos liberta e nos faz vivos, vulneráveis, capazes de amar e deixar-se amar. A cruz exige ações de libertação frente à pobreza, a violência, a alienação, a destruição e ao abandono. Segundo C. G. JunG, psicólogo suíço, o símbolo da cruz provoca efeito sanador e centrador sobre o self do ser humano. Ela é símbolo do sacrifício, do sofrimento, do cosmo (união de todos os opostos), da integridade, da redenção; é um presente de Deus. Ela nos leva a integridade e a acolher os dons divinos. É imagem de da reconciliação de todos os opostos; tem um efeito sanador, protetor e estabilizador. Enfim, a cruz nos leva a abrir-se para o mundo, às pessoas e a Deus; temos que ser tocados, machucados pelas pessoas, até que o amor de Deus possa curar-nos e transformar-nos;
5.    A CRUZ HOJE: A cruz é sinal do triunfo da vida sobre a morte, do amor sobre o ódio; é sinal da árvore da vida, sinal de esperança; é sinal sanador e encorajador. Diante de nós, através dos noticiários das várias emissoras de TV e dos Meios de Comunicação em geral, são apresentados os sofrimentos, as dores, as angustias e as mazelas da vida em todas as suas dimensões, causando muitas vezes indiferença, falta de compaixão, esquecimento do sofrimento ou um tabu, isto é, ver a dor e a cruz como sinal de desalento, dureza, insensibilidade, isolamento, fuga (deixando-as aos cuidados dos psicólogos, médicos, assistentes socais, padres, pastores...) ou como uma espécie de lepra que causa repugnância. Entretanto a cruz nos lembra as paixões de nosso tempo e traz esperança, amor; é um convite a solidariedade com os que sofrem. Ela nos faz carregar e enfrentar a sorte com mais força, otimismo, esperança; faz também ficar interiormente alegre e contente frente ao sofrimento. A cruz é a imagem da humanidade autêntica e da pessoa redimida.



[1] Os cinco itens foram elaborados a partir da leitura do Livro de Anselmo Grum “A CRUZ: a imagem do ser humano redimido”. São Paulo: Paulus, 2010.
[2] “Evangelhos Sinóticos” refere-se aos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas respectivamente.