terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Conselhos Evangélicos


Pe. Márcio Pinheiro

considerações iniciais
            Foi sabendo da importância de conhecermos as origens da Vida Consagrada, os Conselhos Evangélicos e os Votos que iniciamos esta pesquisa, cuja finalidade é compreender o significado e profundidade de cada um em particular. Neste sentido, veremos inicialmente uma introdução aos Conselhos Evangélicos, depois perceberemos qual a diferença entre Conselhos Evangélicos e Votos. Posteriormente, estudaremos um por um os três Conselhos Evangélicos: Pobreza, Castidade e Obediência.

Conselhos evangélicos
O Catecismo da Igreja Católica ressalta que os Conselhos Evangélicos, nas múltiplas facetas, são propostos a todo discípulo de Cristo. A busca da perfeição da caridade, da qual todos os cristãos são convidados, exige daqueles que se consagram livremente ao Senhor a obrigação de praticar a castidade no celibato pelo Reino, a pobreza e a obediência[1]. Eles têm como meta afastar o que pode constituir um obstáculo para o desenvolvimento da caridade. Ao mesmo tempo, manifestam a plenitude viva da caridade que jamais se mostra satisfeita e sempre quer dar mais; indicam caminhos mais diretos, meios mais fáceis, e devem ser praticados conforme a vocação de cada um[2].
A Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata, do Papa João Paulo ii, destaca que através da profissão dos conselhos evangélicos, os traços característicos de Jesus — virgem, pobre e obediente — adquirem uma típica e permanente “visibilidade” no meio do mundo (n. 1); é parte integrante da vida da Igreja (n. 3); a sua prática torna o mistério de Cristo perenemente presente na Igreja e no mundo, no tempo e no espaço (n. 5); a sua profissão pública segundo um carisma específico e numa forma estável de vida comum, é um serviço apostólico pluriforme ao Povo de Deus (n. 9); é sinal e profecia para a comunidade dos irmãos e para o mundo (n. 15); é um sinal profético, exige e expressa o dom de si (n. 16); requer e manifesta o desejo explícito de conformação com Cristo (n. 18); é um dom da Trindade (n. 20); pertence indiscutivelmente a vida e a santidade da Igreja (n. 29); é singular e fecundo aprofundamento da consagração batismal (n. 30); ajuda a desenvolver a graça recebida no Sacramento da Confirmação (n. 30); demonstra que o sacramento da Ordem encontra uma fecundidade peculiar em tal consagração (n. 30); é um caminho privilegiado para a santidade (n. 35); é expressão e fruto de dons espirituais recebidos por fundadores e fundadoras (n. 48); torna a pessoa totalmente livre para a causa do Evangelho (n. 72); leva a pessoa a ir onde Cristo foi e fazer o que Ele fez (n. 75); propõem, por assim dizer, uma “terapia espiritual” para a humanidade, porque recusam a idolatria da criatura e tornam de algum modo visível o Deus vivo (n. 87); enfim, por meio dos conselhos evangélicos, a pessoa é chamada a escolher Cristo como sentido único da sua existência (n. 95).
Segundo Finkler a consagração do religioso não se realiza somente ao professar os votos. Isto é apenas o ato formal mais evidente de um processo de santificação, através da entrega total de si mesmo ao Senhor. Consagrar-se ao Senhor na vida religiosa é comprometer-se seriamente a crescer na união com Deus[3].

Diferença entre Conselhos Evangélicos e Votos

A Pobreza
O documento Perfectae Caritatis ao falar do voto de pobreza diz que
a pobreza voluntária abraçada para seguir a Cristo, do que ela é um sinal hoje muito apreciado, seja diligentemente cultivada pelos religiosos e, se for necessário, exprima-se até sob novas formas. Por ela é participada a pobreza de Cristo, que sendo rico, por nosso amor se fez pobre, para que nós fôssemos ricos da sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9; Mt. 8,20). Pelo que toca, porém, à pobreza religiosa, não basta sujeitar-se aos Superiores no uso dos bens, mas é preciso que os religiosos sejam pobres real e espiritualmente, possuindo os seus tesouros no céu (cf. Mt. 6,20)[4].
Segundo Ridick a pobreza não é nem um conceito, nem uma lei, coisa ou substância que pode ser analisada, dividida ou vista por meio de um filtro para separar os elementos culturais e psicológicos da essência puramente evangélica, mas é uma atitude que nasce de uma relação entre duas pessoas que se amam. É um dom do si mesmo de Deus; é uma atitude universal íntima, encarnada em um modo de vida que se torna um símbolo exterior de um abandono interior. Ela é expressão do amor transcendente proposto por Deus, em Jesus Cristo. Vista desta forma, torna-se libertação e organiza e integra a pessoa. A interiorização, a assimilação da vivência do voto da pobreza por Cristo depende e deriva da integração psíquica dos níveis do homem (psicofisiológico, psicossocial, espiritual-racional)[5].
            Como vemos a pobreza é um meio inestimável para um discernimento adequado dos valores em relação ao chamado religioso. Por meio dela o religioso se coloca numa atitude de humildade e de respeito frente ao extraordinário amor de Deus por nós, ao mesmo tempo que, se mantém à distância das coisas, dos outros, de si mesmo, de forma a integrar e ordenar os níveis de seu ser. Vista desta forma, a pobreza é libertadora, indicativa, enriquecedora.
            A pobreza é o caminho da liberdade e do amor. Sua descoberta é, segundo alguns, fruto da contemplação de Jesus Cristo. Segundo Bibollet, a exemplo de Jesus, devemos ser pobres em nome do amor, da confiança, da compaixão, da valorização, da liberdade, da verdade e da missão. Destaca ainda que só pela força do Espírito Santo seremos capazes de nos dá, pela fé, ao amor e a confiança de Cristo que se abandona nas mãos do Pai, entregando-se completamente a serviço dos homens, construindo por e com eles o Reino[6].
            Conseqüentemente, a opção preferencial pelos pobres no seu justo significado, é conatural a todos os que vivem o conselho evangélico da pobreza  e que estão chamados a amar, acolher e servir os pobres[7].
            Na pós-modernidade a vivência da pobreza encontra muitos obstáculos que devem ser enfrentados e superados com tranqüilidade e equilíbrio. Demonstra também a incompatibilidade entre o seguimento de Cristo e a riqueza (Mt 19,23-24) e aponta que, assim como Jesus, temos que superar a teologia da retribuição e seguir Cristo pobre, dando um testemunho da pobreza evangélica, tanto pessoal como comunitária, para o mundo de hoje[8].
            As motivações que levam o consagrado ou a consagrada a viver o voto de pobreza na pós-modernidade são de ordem teológica, existencial, cristológica e eclesial. Estes são chamados a viverem a pobreza sem desprezar os bens materiais, como um ato de doação a Deus que entrou em nossa vida. Isto requer a exclusão de toda e qualquer forma de ganância, de avareza, de cobiça, de busca de poder e de desejo de dominação. Desse modo a pobreza nos prepara para a vivência de uma autêntica espiritualidade, para aquele encontro definitivo de Deus[9].

Castidade
            O documento Percfectae Catitatis falando acerca da Castidade afirma que:
a castidade ”por amor do reino dos céus” (Mt. 19,12), que os religiosos professam, deve ser tida como exímio dom da graça. Liberta o coração do homem (cf. 1 Cor 7, 32-35), para que mais se acenda na caridade para com Deus e para com todos os homens. É, por isso, sinal dos bens celestes e meio altíssimo pelo qual os religiosos alegremente se dedicam ao serviço de Deus e às obras de apostolado.[10].

Segundo Ridick o voto de castidade é um verdadeiro holocausto de alma e corpo, holocausto escolhido por ser o mais rápido e direto caminho para a perfeição da caridade. Ele é uma síntese humano-cristã da realização de si através da autotranscendência, uma integração de todos os três níveis de vida psíquica, inspirados pela graça e pelo Ágape. Desta forma, uma pessoa respeita o sexo, sua profundidade e significado sublime, na ordem divina, quando vive uma atitude de reverência e respeito pelo Criador, para consigo mesma e para com todas as criaturas[11].
A verdadeira castidade deve consistir na ignorância das realidades sexuais e afetivas, nem no meio patológico ou desprezo de tais realidades que provêm de Deus, mesmo quando os homens delas abusam. Assim sendo, a castidade é uma forma de viver a própria sexualidade, segundo o projeto original de Deus. Como tal deve ser acolhida com humildade, evitando que ela se torne forma de dominação, manipulação, amargura e ruptura. Vivida nesta ótica a castidade torna-se sinal transcendente da radicalidade do Reino, evocando a união da pessoa com Cristo e da Igreja com seu Esposo[12].
A castidade é um dom de Cristo e de sua graça. Ela destina-se para a glória de Deus. Cabe a pessoa consagrada responder com uma fidelidade dinâmica, amorosa, a esta dádiva divina, vivendo asceticamente buscando aprimorar e desenvolver o compromisso de amar sem medida, com espírito de serviço, amor, doação e oblação total, completa e incondicional a Deus e aos outros[13].
Para que a virgindade, a castidade, seja fecunda é preciso amar. Tendo como base o amor, a sexualidade autêntica é fonte de vida, de relação, de fraternidade e de comunhão. Assim sendo, só quem ama e é amado de verdade é capaz de transcender os limites da vida, entregando-se pela sobrevivência e defesa de outras vidas. Noutras palavras, a castidade é a opção irrevogável de oferecer-se a Deus por uma entrega tão plena que nos faz livres para ser homens e mulheres para os outros e as outras na amizade e na união com todas as pessoas[14].
            Por fim, gostaríamos de ressaltar que, embora a castidade seja um dom, precisamos buscar usufruir os meios para crescer no amor casto, virginal. Como indicação, apresentamos alguns que julgamos imprescindíveis: a ascece-disciplina, a oração orante das Sagradas Escrituras, a solidão, o deserto, a vida comunitária, o exame de consciência e a prática da caridade.

Obediência
            O documento Perfactae Caritatis diz que pela profissão da obediência os religiosos

os religiosos oferecem a plena oblação da própria vontade como sacrifício de si mesmos a Deus, e por ele se unem mais constante e seguramente à vontade divina salvífica. Por isso, a exemplo de Jesus Cristo, que veio para fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34; 5,30; Hb 10,7; Sl. 39,9), e “tomando a forma de servo” (Fl 2,7), aprendeu a obedecer por aquilo que padeceu (cf. Hb. 5,8), os religiosos, sob a moção do Espírito Santo, sujeitam-se na fé aos Superiores, vigários de Deus, e por eles são levados a servir todos os seus irmãos em Cristo, da mesma maneira que o próprio Cristo, por causa da sua sujeição ao Pai, serviu os irmãos e deu a sua vida para redenção de muitos (cf. Mt. 20,28; Jo 10, 14-18)[15].
Ridick referindo-se a Rahner explica que a obediência tem duas dimensões: funcional e religiosa. A obediência é “funcional” quando é vontade de obedecer para manter a ordem, facilitar a interdependência, favorecer o querer social comum para o bem e a realização próprios e da sociedade e fazer com que as coisas caminhem bem para o progresso. Na obediência religiosa todo o humano é abraçado pela fé; todo ato de submissão ou aceitação é entendido como orientado não só para o homem, mas para Deus, no seu desígnio providencial de amor pelo mundo[16].
            A obediência exige por si só uma atitude de escuta, escutar comunitariamente, em família, oferecendo a cada irmão ou irmã a possibilidade de contribuir, com sua fala, par ao bem de todos e de todas. Ela é um ato racional, fruto da liberdade e da autonomia pessoal. Obedecer significa aceitar interiormente certa determinação. A obediência, a qual o consagrado ou consagrada é chamado ou chamada pelo voto, é participação à obediência de Cristo. Toda a vida de Cristo foi marcada por uma busca constante da vontade do Pai. Assim, aderindo livremente à pessoa de Jesus, em seu mistério pascal, o batizado, a batizada, o consagrado, a consagrada, é chamado, chamada, também a “obedecer ao Evangelho” (Rm 10,16), ou seja, “a obedecer a Cristo” (2 Cor 10,5)[17].
            Enfim, a obediência de Cristo não é só um modelo a ser admirado, mas uma vida a ser seguida. Os documentos do Vaticano II dizem a esse respeito: “Os religiosos não só devem inserir-se no mistério de Cristo, mas devem assumir o modelo da mesma obediência praticada por Cristo” (cf. LG 42; PC 14). A participação na autoridade de Cristo nos leva a vivenciar as três dimensões da obediência: a obediência apostólica, comunitária e pastoral. Assim sendo, pela obediência a Jesus Cristo, ao povo e pela fidelidade à missão muitos religiosos e religiosas deram suas vidas pela justiça, pela dignidade e pela defesa dos direitos humanos (PDV 28; PO 13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões feitas, ao longo deste trabalho, ajudaram-nos a perceber que, desde o início, a opção pelos “conselhos evangélicos”, foi sinal interpelante de que é possível viver a vida presente, ao ritmo da plenitude escatológica de Jesus Cristo. Vimos também que a pobreza, a obediência e a castidade exprimem as três dimensões fundamentais da vida humana e a radicalidade de Cristo ressuscitado: A pobreza, maneira de usar e se servir dos bens materiais, sem deixar que nos dominem o coração e a liberdade; a obediência, a decisão de, sempre e em todas as circunstâncias, pôr a vontade de Deus, que nos treinamos a perscrutar, acima da nossa própria vontade; a virgindade escolhida como experiência de amor, dando prioridade exclusiva ao amor com que Deus nos ama em Jesus Cristo. Ele, a nossa plenitude e a nossa alegria, nos envia a amar os irmãos como Ele os ama, presenças sacramentais do seu próprio amor.
Em síntese, a vivência dos conselhos evangélicos visam a santidade da Igreja. Surgem como exigências uma castidade que seja abertura para uma autêntica comunhão e não somente uma privação da faculdade de ter relações genitais com uma pessoa do outro sexo; a pobreza vivida não mais a partir da quantidade das coisas, mas a partir do uso que fazemos dos bens e a obediência como experiência responsável, consciente, livre, adulta, capaz de construir a história.

Referência Bibliográfica
  1. BIBOLLET, Bruno. Padres diocesanos: elementos de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2000.
  2. CANTALAMESSA, Raniero. Virgindade. Aparecida, SP: Santuário, 2003.
  3. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Vozes, Paulina, Loyola, Ave Maria, 1993.
  4. FINKLER, Pedro. O formador e a formação. São Paulo: Paulinas, 1990.
  5. OLIVEIRA, José Lisboa Moreira. Viver os Votos em tempos de Pós-Modernidade. São Paulo: Loyola, 2004.
  6. Paulo II, João. Carta Apostólica aos religiosos e às religiosas da América Latina. São Paulo: Paulinas, 1990.
  7. PAULO II, João. Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a formação dos sacerdotes “Pastores Dabo Vobis”. São Paulo: Paulinas, 1992.
  8. PAULO II, João. Exortação Apostólica pós-sinodal Vita Consecrata. São Paulo: Paulinas, 1996.
  9. RIDICK, Joyce. Os votos: um tesouro em vasos de argila. São Paulo: Paulinas, 1986.



[1] Cf. Catecismo da Igreja Católica n. 915.
[2] Idem. nn. 1973-1974.
[3] Cf. FINKLER (1990), p. 130.
[4] PC n. 13.
[5] Cf. RIDICK (1986), pp. 23-27.
[6] Cf. BIBOLLET (2000), pp. 129-133.
[7] Cf. Carta Apostólica de João Paulo II aos religiosos e às religiosas da América Latina, 19.
[8] Cf. Oliveira (2001), pp. 97-114.
[9] Idem, pp. 114-118.
[10] PC n. 12.
[11] Cf. RIDICK, Op. Cit., p. 80.
[12] Cf. Oliveira (2001), pp. 40-44.
[13] Idem, pp. 57-76.
[14] Idem, pp. 91-95.
[15] PC n. 14.
[16] Cf. Idem. p. 137.
[17] Cf. Oliveira (2001), pp. 142-148.

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